27 junho, 2006

Advertência

Acordou dois minutos antes do despertador. Pulou da cama nervoso e afobado, pois sabia que não tinha mais cigarros. Antes mesmo de escovar os dentes ou tomar seu café da manhã, desceu desesperado os três lances de escada até o andar térreo. Foram mais dois quarteirões a passo apertado até enfim chegar de forma triunfal na padaria. Um Marlboro, por favor.
Então, já amansado pelo primeiro cigarro do dia, ele pode notar com certo espanto a singularidade que aquele maço possuía em relação a todos que já tinha visto. A lateral era, evidentemente, tomada pelo anúncio oficial. Mas este que fora sempre ignorado, agora lhe pretendia a respiração. O Ministério da Saúde adverte: a diferença entre o remédio e o veneno está na dose.

25 junho, 2006

O ouvido, os olhos e o coração

Eu fui lá e fiz tudo-o-que-deveria-ter-sido-feito. Mas, mesmo assim, não deu certo. O “resultado” não foi o “esperado”. Eu pensei, ponderei, e, mesmo assim, cheguei no “contrário”. E agora? Como será que devo seguir a diante? Fazer o que é melhor para mim ou seguir tudo isso que estão me sussurrando nos ouvidos?
Desculpem-me, senhores. Mas, o meu caminho sou eu quem traça, vocês gostando ou não. Afinal, não estou aqui para agradar, mas apenas quero escrever a minha história. E, agora não posso parar. Estão vendo todos esses caminhos na minha frente? Eu ainda preciso escolher um, e, mais difícil, tenho que traçá-lo. E vocês ainda querem me dizer o que é “certo” e o que é “errado” antes que eu mesmo possa chegar lá? Quanta pretensão têm vocês, não? Será que é tão difícil de entender que eu ainda não posso abraçar as respostas se não tive se quer tempo de formular as perguntas?
O meu caminho traço eu. E, por favor, deixem-me sofrer o desgosto das minhas derrotas. Não berrem sobre obstáculos se eu nem mesmo posso ouvi-los! As vitórias serão minhas. E, pasmem, as derrotas serão curtidas no silêncio das suas gritarias. Enquanto vocês estarão comemorando as suas alegrias, eu estarei vivendo dos meus erros.
Por mais que vocês acreditem no contrário, eu hei de ser os meus próprios tropeços. Dançarei sobre eles, levantarei meus braços pra dizer “esse sou eu”. Gostem os senhores ou não, é assim que será, até que eu ache que não deva mais ser. Essa metamorfose ambulante jamais fechará os olhos pra realidade, mas tampouco dará ouvidos a essa verdade pronta e engarrafada.
Eu chegarei lá, mesmo que tenha que trilhar o caminho da mentira. E ainda que seja necessário deixar restos de dor pelos cantos.
Aquietem-se aí fora. A minha verdade é construída aqui dentro.

04 junho, 2006

Lágrimas

“Pareceu ao médico que ouvia chorar, um som quase inaudível, como só pode ser o de umas lágrimas que vão deslizando lentamente até às comissuras da boca e aí se somem para recomeçar o ciclo eterno das inexplicáveis dores e alegrias humanas”. *

Não esperou nem o fim do parágrafo para fechar o livro. O que acabara de ler fez o mundo todo ficar em silêncio. De um instante para o outro, todas as suas concentrações se focaram em apenas um esforço. Lembrar-se da última vez em que fora capaz de chorar. Dores e alegrias jamais lhe faltaram, mas as lágrimas, essas sim, haviam secado. Milhares de situações foram desfilando pela mente, mas nenhuma delas tinha o tom da derrota ou a vibração da vitória. Todas guardavam apenas o amargo da indiferença. Um filme, uma dança, um bouquet de rosas, qualquer coisa que tivesse sido capaz de fazer um choro brotar. Nada. Ela vivia o mais absoluto vazio de emoções. Sentia que passava pela vida sem desfrutar do que ali houvesse, sempre protegida por um coração duro e gelado, entregue à poesia, mas alheio ao amor. Agarrou o livro com todas as suas forças e pediu ajuda para suportar o imenso aperto que a preenchia inteira. Foi nessa mesma hora que sentiu um sabor salgado na língua. Era uma lágrima, que, enfim, corria-lhe a face.

* José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira