04 junho, 2006

Lágrimas

“Pareceu ao médico que ouvia chorar, um som quase inaudível, como só pode ser o de umas lágrimas que vão deslizando lentamente até às comissuras da boca e aí se somem para recomeçar o ciclo eterno das inexplicáveis dores e alegrias humanas”. *

Não esperou nem o fim do parágrafo para fechar o livro. O que acabara de ler fez o mundo todo ficar em silêncio. De um instante para o outro, todas as suas concentrações se focaram em apenas um esforço. Lembrar-se da última vez em que fora capaz de chorar. Dores e alegrias jamais lhe faltaram, mas as lágrimas, essas sim, haviam secado. Milhares de situações foram desfilando pela mente, mas nenhuma delas tinha o tom da derrota ou a vibração da vitória. Todas guardavam apenas o amargo da indiferença. Um filme, uma dança, um bouquet de rosas, qualquer coisa que tivesse sido capaz de fazer um choro brotar. Nada. Ela vivia o mais absoluto vazio de emoções. Sentia que passava pela vida sem desfrutar do que ali houvesse, sempre protegida por um coração duro e gelado, entregue à poesia, mas alheio ao amor. Agarrou o livro com todas as suas forças e pediu ajuda para suportar o imenso aperto que a preenchia inteira. Foi nessa mesma hora que sentiu um sabor salgado na língua. Era uma lágrima, que, enfim, corria-lhe a face.

* José Saramago, em Ensaio sobre a cegueira

5 comentários:

Nathy disse...

Foi uma traducao livre mesmo, espero que tenha dado pra pegar o espirito da musica! :)
By the way, acho que esse livro eh o melhor que eu ja li na vida...
Bjs

carolina disse...

as lágrimas. tão necessárias. lindo.

Anônimo disse...

Be, um dos melhores textos que já li aqui. Você está cada vez melhor. Te amo

Anônimo disse...

amei... entregue, mas alheio...verdadeiro demais...dificil!

Anônimo disse...

wow... me faltam palavras... e isso é raro...
beijos...
vou ler...