23 abril, 2006

O corpo e a alma


Um texto de 27 de janeiro de 2006, fruto de uma viagem ao Peru.


"Escrevo a mais de 4.000 metros de altitude, em um acampamento no Caminho Inca, em plena Cordilheira peruana. Somente esta manhã, foram 5 horas de caminhada em subida e mais de 90 minutos de descida acentuada. O ar é notoriamente rarefeito e a chuva não dá trégua um momento sequer.

A dúvida então se torna natural. Para que escolher três dias de trilha se se pode chegar à mesma Macchu Piccu em um confortável trem? Pior, quanto maior a intensidade da chuva e a dureza da subida, mais forte se torna tal pergunta.

Mas, o fato é que a alma se renova com os percalços do corpo. E nós, ratos de cidade grande, vivemos uma ordem cruelmente diferente. Passamos a vida a nos desgastar fisicamente por conta das nossas preocupações, das mais consistentes às mais cotidianas. Não sabemos se o dinheiro vai dar, se vamos sofrer algum assalto ou violência pior, se o ônibus vai passar a tempo ou se o trânsito estará ao menos suportável. E, desse modo, terminamos um dia de trabalho – em que mal se levantou de uma cadeira – com a sensação de um atropelamento por caminhão.

No entanto, no momento em que um homem sedentário se propõe um desgastante desafio aventureiro, o peso da mochila sobre os ombros se torna tão intenso, que a alma ganha em leveza. A altitude não nos permite lembrar o poluído ar da metrópole e o barulho da chuva apaga da memória o vai-e-vem das grandes avenidas. Em suma, há tantas dores físicas a serem superadas que os problemas se tornam todos distantes. De cima dos Andes, é impossível enxergá-los. E, com a alma protegida de seus inimigos diários, temos uma melhor visão de quem somos, o que queremos e o que buscamos.

Depois de um dia de tão pesada caminhada, vêem-se as dúvidas existencias perderem sentido, enquanto brilha, com inacreditável força, a grandiosidade que ilumina a alma de cada um de nós."

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei!! Um desses posts que consegue falar o que todo mundo pensa e nunca expressa em palavras!
É isso mesmo!
Di